Estatutários e Celetistas: Perspectivas no SUS
As mudanças constitucionais associadas à Reforma Administrativa redefiniram o conceito de emprego público, que passa agora a ser característico de um funcionário próprio não-estável, subordinado às normas do direito privado da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Com isto foi reintroduzida a relação contratual direta no âmbito do setor público, restrito ao indivíduo como pessoa física, já que o contrato coletivo e a negociação coletiva na administração pública, ao contrário do que acontece em muitos países, continuam, entre nós, não sendo admitidos. O servidor público tradicional, que é um estatutário, tem seu regime de trabalho estabelecido por normas gerais permanentes e impessoais, com funções, regras e remuneração habitualmente definidas por lei. Ao contrário, o celetista observa uma relação contratual que sempre pressupõe uma liberdade de negociação de preços e condições de fornecimento de utilidades.
De um ponto de vista doutrinário jurídico, num contexto político-social clássico de administração do Estado, a convergência de interesses e de propósitos entre a administração do Estado e seu funcionário estatuário é sempre pressuposta. Assim, quem foi admitido em concurso e assumiu uma função em dado órgão da administração pública é visto como um sujeito convergente ou convenente com o Estado, já que está obrigado a ter por referencial ético os mesmos valores de longo prazo (paz, eqüidade, justiça, desenvolvimento social, etc.) que são esposados pelo Estado.
Por certo, essa é uma relação idealizada, e em obsolescência, face à evolução do Estado moderno, sobretudo quando se considera - como aconteceu no Brasil, após a relação estatuária ter sido regulamentada pelo Regime Jurídico Único - que a condição de funcionário público estendeu-se a uma massa extraordinária de pessoas que exercem funções as mais diversas na prestação de serviços de educação, saúde, assistência social, etc. Que essa pressuposição de convergência de interesses é fruto de uma concepção histórica que vem perdendo muito de sua vigência fica demonstrado no fato de ter a Constituição Federal assegurado ao funcionário público o direito à organização sindical e à divergência trabalhista sob a forma da greve, embora esteja em vigor um entendimento de jurisprudência de que os servidores públicos não podem participar de negociações coletivas e seus acordos.
De todos os modos, nas circunstâncias da administração clássica do Estado, a regulação dos vínculos do trabalho no setor público é altamente jurisdificada, ou seja, dependente da emissão de leis e, por isso mesmo, fixa relações de trabalho vistas como rígidas pelos defensores de reformas liberais do Estado. Ao contrário, a regulação privada, embora tenha por referência um quadro legal predefinido (no Brasil, a CLT), abrange mecanismos dependentes de fatores ligados ao mercado, aos aspectos políticos de conflito e à negociação coletiva, bem como a normas gerenciais próprias de cada empresa. Neste caso, diz-se que as relações de trabalho são comparativamente flexíveis.
A Constituição de 1988 consagrou e universalizou o modelo estatutário, obrigando sua adoção pelas autarquias e fundações, ao mesmo tempo em que extinguia a alternativa da vinculação celetista, que era praticada de forma subsidiária em amplos setores governamentais. Essa unificação foi feita em nome de uma igualdade maior (isonomia) das condições de vínculo e remuneração do trabalho, que era aspirada pelas organizações de funcionários públicos e que correspondia, em última análise, a uma antevisão de um Estado de Bem-Estar composto por órgãos públicos especializados e funcionários de carreira bem treinados e dedicados em tempo integral à busca do bem público. A gestão pública dos estados e municípios, como não podia deixar de ser, seguiu esse potente influxo a favor da relação estatutária do trabalho no setor público.
A década de 90, no entanto, presenciou uma evolução das políticas públicas que se deu em sentido oposto a esse desiderato político-institucional de Estado e de vinculação de seus funcionários. Aqui não cabe julgar o que houve de bom ou mau nessas mudanças, mas apenas indicar que o curso ulterior das políticas e das práticas de gestão pública impôs um modelo bem mais fragmentário de vínculos de trabalho.
As exigências das reformas estruturais do Estado que entraram na ordem do dia, não reforçaram o modelo constitucional, com seus pressupostos implícitos de Welfare State, senão, ao contrário, apontaram na direção da construção de um "Estado regulador mas não essencialmente prestador", cujas diretivas foram incorporadas ao Plano de Reforma Administrativa do Estado, de 1995. Essa mudança de orientação introduziu a expectativa que o Estado se responsabilize menos diretamente pela função de agente (que faz) e mais pela de principal (que financia e controla). O modelo estatutário não é descartado mas é redescrito, nesta perspectiva própria à reforma administrativa do Estado do governo atual, como adequado apenas às funções do "núcleo estratégico" do Estado, reservado aos funcionários que exercem funções regulatórias e administrativas de alto nível. No âmbito das funções "não-exclusivas" do Estado (em que se encontra o SUS), o paradigma de uma administração gerencial exige a intervenção de relações contratualistas com diversos tipos de agentes, que se transformam em operadores de suas políticas.
A orientação para a maior flexibilidade confunde-se, em grande parte, com a preocupação conjuntural de exercer maior controle dos gastos diretos e indiretos com pessoal. Como modalidade complementar de vincular trabalho, o governo federal está promovendo a readoção do regime celetista, considerado mais flexível e de menor ônus para a previdência pública, na medida em que pode, em boa parte dos casos, ser remetido ao regime geral de previdência social para efeitos da aposentadoria. Com essa medida, está sendo criada a figura do "emprego público". Ademais, nos três últimos anos, foi introduzido outra diretriz de contenção de gasto, através de dispositivos legais que fixam em 60% das receitas líquidas dos municípios e dos estados o limite de despesas com o quadro de pessoal de administração direta, fundações e autarquias.
As perspectivas para os dois tipos de regimes no SUS são abordadas a seguir, de forma muito geral.
Regimes Estatutários
Considerando as determinações da reforma administrativa do Estado, esses regimes (falamos do plural, porque envolvem estatutos definidos nos três níveis de governo) tendem a ser cada vez mais restritos a pessoal em exercício nas chamadas "funções essenciais" da administração pública nos quadros do aparato jurídico, policial e da administração estratégica. Todas as demais funções deverão ser cumpridas por pessoal com outra forma de vinculação, direta ou indireta. Portanto, rigorosamente, os regimes estatutários não podem ser tidos como uma alternativa viável para suprir as demandas futuras por trabalho no SUS. No entanto, continuarão a ser importantes para os cerca de 1 milhão de funcionários do sistema público de saúde, atuando como um marco regulatório paralelo às formas mais "flexíveis" que venham a ser adotadas.
Regime Celetista
A contratação sob regime celetista é a opção preferencial dada pela União a todas as carreiras de "funções não-essenciais de Estado" da administração direta, fundacional e autárquica. Dá origem ao que se vem chamando de "empregado público", um funcionário não-estável, que pode ser demitido tanto por desempenho insatisfatório quanto por excesso de quadros. Sua seleção é feita por concurso público de provas ou de provas e títulos, em conformidade com a complexidade das tarefas que são atribuídas, portanto, admitindo um processo seletivo "simplificado". De todos os modos, o limite imposto ao gasto público com pessoal, que não pode ultrapassar 60% da receita líquida de estados e municípios, tem que ser contemplado. É previsível que os estados e municípios passem em breve a criar quadros celetistas da saúde, de acordo com as autorizações legislativas correspondentes. O regime de aposentadoria também deverá ser regulado em cada um desses casos, porque agora existe a possibilidade de que esteja remitido à previdência social geral. Há duas linhas de vinculação possível nessa situação - a indireta, através de cargos gerenciados pelas fundações de apoio, tal como acontecia antes da Constituição de 1988; e a direta, com contratação pela própria secretaria de saúde. Neste último caso, para o gestor do SUS, o novo tipo de problema que será gerado pela contratação celetista é que internalizará na instituição e tornará mais visíveis as diferenças de remuneração existentes em relação aos quadros estatutários (por exemplo, entre médicos estatutários da rede que ganham menos que os médicos celetistas do PSF, mesmo quando se considera um número comum de horas trabalhadas) . A "institucionalização" desses diferenciais pode ser causa de conflitos entre segmentos distintos do pessoal da secretaria de saúde.
(Baseado no artigo, A Regulação dos Vínculos de Trabalho no SUS, de Roberto Passos Nogueira, em publicação pelo Ministério da Saúde)
fonte:www.nesp.unb.br/polrhs
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